Article image

PS

Paulo Saraiva30/10/2025 02:59
Compartilhe

A emergência da inteligência artificial como ferramenta terapêutica em populações periféricas

    A expansão das tecnologias de inteligência artificial (IA) tem gerado novos horizontes também no âmbito da saúde mental, fenômeno que se revela particularmente relevante para populações periféricas — grupos que enfrentam barreiras de acesso ao tratamento convencional. Neste artigo-científico, exploramos evidências recentes do papel de agentes conversacionais e plataformas de IA como suporte terapêutico, destacamos o panorama no Brasil com dados sobre lacunas no acesso ao cuidado, e discutimos os impactos, oportunidades e riscos desse caminho, sobretudo para comunidades vulnerabilizadas.

    Evidências de eficácia de agentes de IA para saúde mental

    Estudos recentes de revisão sistemática e meta-análise apontam que chatbots ou outros agentes de IA conversacionais podem produzir reduções estatisticamente significativas nos sintomas de depressão e angústia. Por exemplo, uma meta-análise de 15 ensaios randomizados controlados (ECR) encontrou uma redução média no sintoma depressivo com Hedge’s g ≈ 0,64 (95% CI 0,17–1,12) e em angústia (g ≈ 0,70, 95% CI 0,18–1,22). PMC+3PMC+3PubMed+3 Outro estudo com 18 ECRs envolvendo 3.477 participantes reportou melhora em depressão (g = -0,26, 95% CI -0,34 to -0,17) e em ansiedade (g = -0,19, 95% CI -0,29 to -0,09). PubMed Na prática, isso sugere um efeito mais modesto comparado à terapia humana convencional, mas com potencial escalável.

    Importantes ressalvas merecem atenção: a maioria dos estudos teve duração curta (por exemplo oito semanas) e poucos avaliam seguimentos de médio ou longo prazo. Além disso, há variabilidade considerável entre os designs de chatbot, a qualidade da intervenção, e o perfil dos participantes (muitos são estudantes universitários, de classes médias). apsa.org+1

    Esses achados apontam para a plausibilidade de uso da IA como complemento ou porta de entrada para cuidado, especialmente em contextos com escassez de recursos, mas não ainda como substituto integral do atendimento humano.

    Panorama brasileiro: lacunas no acesso e oportunidades para IA

    No Brasil, o problema da cobertura insuficiente de saúde mental é grave e desigual. De acordo com o estudo nacional utilizando a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, a prevalência de sintomas de depressão (PHQ-9 ≥ 10) foi estimada em 7,9 % (95% CI 7,5-8,3). Dentre aqueles com depressão clinicamente relevante, cerca de 78,8% não receberam qualquer tratamento. PubMed+1 Já em pesquisa mais recente no Brasil-Metropolitana de São Paulo, menos de 10% receberam cobertura considerada “efetiva” (fármacos + psicoterapia adequados) para depressão grave. BioMed Central Em outro estudo de 2023/20, a prevalência de “acesso ruim aos serviços de tratamento da depressão” foi de 14,9% (95%CI: 13,6–16,2) entre pessoas que relataram diagnóstico, com prevalência mais alta entre jovens (15–29 anos), sem escolaridade e com limitação funcional. PMC

    Esses dados sugerem que populações periféricas — jovens, com menor escolaridade, em regiões menos atendidas — são aquelas que enfrentam as maiores barreiras de acesso. Nesse cenário, a IA pode se configurar como instrumento de democratização do cuidado. Populações que vivem em bairros com menor densidade de profissionais, ou que dispõem de poucos recursos para sessões particulares, podem se beneficiar de intervenções digitais que exigem apenas smartphone e conexão à internet.

    Impactos potenciais para periferias e desafios específicos

    Para comunidades periféricas, a IA aplicada à saúde mental pode gerar impactos positivos como: (i) redução da distância e tempo de espera para primeira intervenção; (ii) anonimato e menor estigma associado ao cuidado, especialmente útil em contextos comunitários onde o julgamento social pode inibir a procura por ajuda; (iii) custos reduzidos ou gratuitos – o que torna a terapia digital mais acessível a quem tem renda limitada.

    No entanto, os desafios são substanciais e merecem ponderação:

    • A infraestrutura digital pode ser instável ou insuficiente em áreas periféricas — conexão lenta, custo de dados, dispositivos antigos.
    • A literacia digital e de saúde mental pode ser mais baixa — sem orientação adequada, o usuário pode não engajar ou não obter benefício pleno.
    • A qualidade e a adequação cultural das intervenções são críticas — muitos chatbots são desenvolvidos em contextos de países de alta renda e podem não contemplar os determinantes sociais da saúde mental nessas comunidades.
    • Em situações de crise ou ideação suicida, as intervenções digitais podem falhar em oferecer suporte humano imediato — o risco de substituição indevida do atendimento humano é real.
    • Dados sensíveis gerados pelas interações podem sofrer vazamentos ou usos não transparentes, o que é especialmente problemático em populações vulneráveis.

    O que pode ser feito para viabilizar a IA como estratégia de saúde mental para periferias

    Para transformar esse potencial em resultados concretos e seguros, propõe-se uma articulação de políticas públicas, inovação tecnológica e comunidade. Em primeiro lugar, estabelecer um marco regulatório para intervenções digitais de saúde mental — exigindo comprovação de eficácia, segurança de dados e transparência algorítmica. Em segundo lugar, ampliar parcerias entre governo, serviços de saúde pública (como o Sistema Único de Saúde) e atores de tecnologia para integrar chatbots como extensões dos cuidados humanos, não como substitutos; por exemplo, chatbots poderiam realizar triagem, psicoeducação e encaminhamento para profissionais quando necessário. Em terceiro lugar, co-desenvolver estas tecnologias junto às comunidades periféricas (design participativo), para que linguagem, cultura, desafios locais e modos de viver sejam contemplados — isso aumenta aceitação e eficácia. Em quarto lugar, investir em literacia digital e saúde mental — promover entre moradores orientações sobre uso seguro, limitações dos chatbots, sinalização de risco e quando procurar ajuda humana. Por fim, monitorar de forma contínua métricas de engajamento, mudança de sintomas, escalonamento quando necessário, e acesso para os grupos mais vulneráveis.

    Considerações finais

    A inteligência artificial terapêutica aparece como uma ferramenta promissora para reduzir as desigualdades de acesso à saúde mental em periferias brasileiras. A evidência mostra que os efeitos são reais, embora modestos, e que há lacunas importantes — tanto em termos de tecnologia quanto de contexto social. O grande desafio é desenhar intervenções que sejam integradas, inclusivas e responsáveis. Se bem implementada, a IA pode assumir o papel de ponte para atendimento humano, em vez de ser uma solução isolada. Caso contrário, há o risco de que populações mais vulneráveis recebam “terapia de segunda categoria” ou sejam expostas a riscos adicionais.

    Compartilhe
    Comentários (0)